Sonhos febris, paixões inéditas, invenções embaralhadas. Que bom seria habitar os mundos eternamente lúdicos da infância. É nesse terreno que aterriza o inconsiente criativo da designer gráfica Luisa Guarnieri, a convidada dessa edição. Leia nossa conversa na seção abaixo e não deixe de conferir também a nossa última news, em que papeamos com o artista visual Igor Rodrigues.
⬇️ Bora lá?
Diálogos /// Ana Pecis conversa com Luísa Guarnieri
Luísa Guarnieri é um bebê da internet, nascida em um universo cronicamente online. Designer gráfica, criou o Acervo de Lugares Inexistentes em 2024 e compartilha seu processo criativo e sua curiosidade pelo mundo criando conteúdo para o Instagram, TikTok e Youtube.
— O quanto da sua criança interior tem no que você produz? “100%. As coisas que eu faço agora existem porque tive uma infância muito cercada de arte. Tanto no estilo do que eu faço (sempre penso que desenhar como uma criança é a melhor coisa que pode me acontecer), quanto nas temáticas. Muito do que crio vem das memórias, das coisas que eu gostava. Inclusive, é um exercício que fiz no ano passado: juntar imagens de coisas que eu assistia e lia, e tentar perceber semelhanças com o que faço hoje. Não diria nem que é a coisa do ‘curar a criança anterior’, é como se ela fosse mesmo um guia.”


— Como a diversão faz parte do seu processo? “Nem todo trabalho permite, mas eu tento me divertir em tudo que eu faço. Quando o processo me permite estar confortável, fazer coisas meio loucas para depois chegar em algo que faça sentido, é quando eu estou melhor. Se desde o início eu tento ser muito pragmática e certinha, acaba travando, fica estranho. Geralmente, começo testando ideias soltas, mesmo que não fiquem tão boas. Às vezes faço coisas só para soltar a cabeça, que nem vão para o resultado final, mas fazem parte da etapa da diversão, que é quando a criação acontece de verdade. Depois, entro numa fase mais certinha, de desdobrar em formatos, organizar. Nessa hora, coloco um podcast ou YouTube. Já na parte da ‘maluquice’, é sempre com música.”
— Como é a sua relação com as cores? “Sempre testo muito. Como faço bastante coisas manuais, acabo me limitando pelas cores que tenho disponíveis, como as da massinha, e isso já vira uma base — mas se uma cor não fica legal, depois posso editar. Principalmente nos trabalhos pessoais, eu não defino uma paleta desde o início. É muito feeling. Tenho algumas que sempre me atraem, como vermelho forte e verde. Gosto de coisas bem coloridas — sou meio inimiga do minimalismo. Às vezes estou fazendo tudo numa cor e, de repente, mudo no Photoshop usando o Hue/Saturation só para ver o que acontece. Para trabalhos de cliente, até mostro paletas mais definidas, mas no meu processo pessoal é muito mais livre.”


— A tecnologia amplia ou limita na hora de criar? E as redes sociais? “É uma relação difícil. Eu brinco que sou ‘cronicamente online’ porque desde muito pequena estou na internet. Com 3 anos já usava computador e comecei a fazer arte por causa do Orkut, em 2009. Meus pais, inclusive, se conheceram por um site, então me considero um bebê da internet. Ao mesmo tempo, tem um lado complicado. Hoje existe essa sensação de brain rot, com o TikTok e o Instagram tentando te puxar o tempo todo. É uma briga constante para não ficar presa nisso. Mas também descubro coisas incríveis online — às vezes muito aleatórias. Tenho postado referências semanais e isso me mostra como a internet me leva para lugares inesperados. Sou obcecada por arquivos como o Internet Archive. Além disso, a internet me fez chegar em muita gente e é doido quando isso se traduz no real. Em feirinhas, por exemplo, pessoas dizem ‘vejo seus vídeos’, e é ali que você percebe: não é só uma fotinha do Snoop, tem uma pessoa ali. Acho que o mais importante é isso: usar a internet para criar comunidade e tentar não se apegar tanto, mesmo sendo difícil.”
— Se imagine fora do seu corpo. Você pode ser feita de qualquer coisa no mundo, ter qualquer cor, qualquer formato físico ou imaterial. Do que você seria feita? "Sempre que vou desenhar alguma coisa, a primeira coisa que faço é uma maçãzinha com um bichinho saindo. Então, se eu fosse qualquer outra coisa, seria esse bichinho que mora na maçã. Não exatamente uma maçã ou uma minhoquinha, mas o bichinho da maçã feito de massinha. Essa é a minha forma real.”


— Qual palavra você guardaria? “Sonho. Não no sentido de metas ou desejos para a vida, mas esse lugar estranho e divertido dos sonhos — como um sonho febril, com coisas de infância meio embaralhadas na cabeça. É algo que me interessa muito, visualmente também. Penso no sonho como esse espaço meio sem sentido, mas que te atrai, que tem uma estética legal. Tem muito a ver com as paisagens dentro da minha cabeça, que têm essa cara meio Castelo Rá Tim Bum.”
— Como vai estar o mercado de arte daqui há dez anos? ”Nossa, dependendo do ponto de vista, essa pergunta até soa meio apocalíptica. Dá um certo medo pensar para onde tudo pode ir. Mas, por outro lado, tenho visto muita gente se voltando para o handmade, talvez como um contraponto à inteligência artificial. Acho que há um interesse crescente por trabalhos manuais — mesmo que digitais, mas feitos com a mão e a cabeça das pessoas, com intenção e presença. Sinto isso também na recepção do que eu faço, e vejo muita gente nesse mesmo caminho. Então, minha resposta pode ser mais uma esperança do que uma previsão. Se isso continuar crescendo, talvez a gente consiga manter esse “universinho” de resistência. Espero que a gente não vá para um limbo da IA, com imagens de pessoas de dez dedos.”
— Quais são as suas referências e indicações para o nosso público? “Tudo aquilo que eu gostava quando era criança ainda é muito referência pra mim: Castelo Rá-Tim-Bum, Rá-Tim-Bum, Mundo da Lua… todo esse universo infantil me toca muito até hoje. Entre artistas visuais, dois dos meus favoritos são Keith Haring e Edward Hopper (pode parecer que não tem muito a ver com o que eu faço, mas essa energia meio nostálgica, essas cenas vazias e meio estranhas me influenciam bastante). Cresci com pôsteres do Hopper pela casa, então isso ficou muito marcado em mim. Musicalmente, tenho estado obcecada com Talking Heads — é o que coloco pra tocar quando vou criar. Não sei se tenho sinestesia, mas parece que estou tentando transformar o som em imagem, como se a música me guiasse visualmente. Também me inspiro muito nas coisas pequenas do dia a dia: uma página de revista, um papel achado na rua, adesivo de fruta… Adoro essas coisas meio vernáculas, imperfeitas, como xerox antigos, recortes. Tento que meus trabalhos pareçam esse tipo de achado, como se alguém encontrasse por acaso. Esteticamente, sou muito apaixonada pelos anos 80, especialmente o Memphis Group, com suas cores, formas e estampas misturadas. Minhas indicações são The Legend of the Stardust Brothers, Susan Seidelman, especialmente Procura-se Susan Desesperadamente (com a Madonna) e Smithereens, que tem um clima punk de NY nos anos 80. Esse último é sobre uma personagem que faz pôsteres e zines — super visual, muito legal pra quem gosta de arte. De livros, Kentuckis, da Samantha Schweblin. É uma leitura super visual e instigante — meio Black Mirror, sobre bichinhos de pelúcia com câmeras. Você pode ser o dono ou o observado. Foi um dos livros mais envolventes que li recentemente.”
O que andamos lendo? /// Nossa equipe compartilha
"Tive meu primeiro contato com a ficção da Chimamanda Ngozi Adhichie lendo A contagem dos sonhos, um romance sobre desejos e frustrações, deslocamentos e ancestralidades. A TAG convidou o História Guardada para compartilhar impressões de leitura, e criamos um vídeo para o Youtube e um reels com esse objetivo. Agora, quero conhecer O talentoso Ripley, da Patricia Highsmith, livro que inspirou filmes e séries (como a recente da Netflix com o Andrew Scott) que gosto bastante.”
"Em abril, quero me desafiar a ler o monumental Anna Kariênina, do Tolstói. Além dele, estou curiosa para ler A vontade de mudar, da bell hooks, especialmente depois da leitura de Tudo sobre o amor no mês passado."
“Comecei abril relendo Limite branco, do querido Caio F., e iniciei Sonhos em tempo de guerra, de Ngũgĩ wa Thiong'o, junto com Stardust, da Leonora Miano. Todos esses livros exalam esperança e, sinceramente, acho que é exatamente isso que precisamos, né?”
“Neste mês comecei a ler Santos de casa, do Luiz Antonio Simas. O livro busca entender como o catolicismo da colonização portuguesa se moldou através das influências indígenas e africanas e se transformou em festa no Brasil. Estou gostando bastante, mas sou suspeita pra falar porque adoro tudo que o Simas escreve!”
Clube de leitura /// Mau hábito, de Alana S. Portero
No dia 14 de maio, às 19h, teremos nosso primeiro encontro no clube de leitura d’AzMina! Conversaremos sobre Mau hábito, da escritora espanhola Alana S. Portero.
Todas as apoiadoras d’AzMina poderão participar do encontro e debater sobre esse livro amado por Pedro Almodóvar, que narra - com muita graça e delicadeza - a trajetória de uma menina que está descobrindo como lidar com o próprio corpo. Doe pr’AzMina hoje, fortaleça projetos comprometidos com os direitos das mulheres e, de quebra, participe do nosso clubinho! Vem ver mais infos aqui:
Financie o História Guardada /// A gente precisa de você :)
O História Guardada é um projeto independente e dependemos do nosso público para continuarmos existindo. É real: nós precisamos de você. Em 2025, apoie a nossa campanha de financiamento coletivo ou doe agora via pix, nossa chave é: historiaguardada@gmail.com.
felicidade imensa conversar com a luísa <3